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Título Pequeno

SONHOS DE VOO DE BICICLETA

G itocazo confins de 2015

 

Quando tinha uns doze anos sonhei que andava de bicicleta pelas ruas do Carrão, entrelaçadas de viadutos, terminais, matinhos mal cuidados, canalizados de rios sufocados das cidades-concretos, memórias de afogamentos de infância de meu pai, tias e tios. Caminhozinho de favelas, coisas quadradas construídas como vestígios de fábricas, muralhas que separam comunidade de trens, carros e carroças, mapas da cidade-leste, ainda cheia de céus e coisas cinzas de meninos esperando faróis darem o disparo da-hora-certa de chegar ao outro. Coisas de trocados, mundos paralelos.

 

Eram sim mapinhas hostis às caminhadas de pele e olhos, bicicletas não cabiam - ainda não cabem -, eram esmagadas. Tudo era programático e coordenado pelo ritmo do trabalho que separava gentes. Mas entre essa ruas de pixe, a secura de poucas árvores subsistidas, talvez por puro esquecimento, a gente espiava buraquinhos de jardins de alguma coisa. Dava para notar mundinhos à parte de uma família ou outra que conseguiu manter-se-mato no meio dos mapas de asfalto, parapeitos e pipas entrelaçadas às motos-vespas. Algum ratinho ou cegas baratas dando sinais de que um modo-terra que ainda sucumbia por qualquer fresta.

 

Ouvindo histórias de crianças que eram achadas afogadas, nessa vias, quando chovia e as águas não encontravam seus rios, eu viajava às vozes que me narravam, sonzinhos que nunca se foram de minha memória. Podiam ter sido meu pai, as crianças, pensava. Podiam também ter sido eu, poucos anos antes de ter nascido. Podiam terem sido exatamente quem foram, as crianças que ainda jogavam pipas e empinavam bolas às rodinhas de rolimãs resistindo espaço de céu em vida de mato-cinza. Triste que foram, como foram os rios, sucumbidos a essas empreitadas mal engembradas dos tempo de hoje. Daquele tempo de tantos quarentas anos antes. De tempos que substituíram passagens por muralhas.

 

Eu ficava a imaginar, toda vez que nos arrastávamos por lá em rodas de borracha e lataria de indústrias, vindo de uma tarde feliz no jardim de minha vó, ainda com plantinhas sagradas, a barulheira que o rio encanado fazia em choro debaixo de nós e como só não ouvíamos sucumbidos às ruidezas de carros e pensamentos inúteis.

 

Ficava a imaginar andar nos subsolos e resgatar os peixes esquecidos, as bolas rasgadas e as bicicletas que nadavam em resíduos de pressa e praticidades dos mundos dos homens.

 

Foi então que um dia eu sonhei, sonhei que caminhava de bicicleta -  pedalava é a palavra que inventamos, mas gosto mais da possibilidade de caminhar de bicicleta, como voar mais à frente -, ia da avenida Celson Garcia – para mim, sinônimo de anonimato – em direção à Toledo Pizza, onde encontraria e brincaria com minhas primas na ruela onde fora plantada a florestinha de minha vó.

 

Como os sonhos são fortes e são nossos, o mundo de rodas de borrachas não me atingiam, eu era livre e mágica com minha bicicleta de criança. Pedalava e observava o caminho, que já sabia de cor de tantas vezes idas e tantos pensamentos tecidos. Foi quando então, por feitiçaria de imaginações, eu comecei a flutuar.

 

Sim, não era voo, era flutuação. Não podemos confudir detalhes de levezas, era macio em câmera lenta. Era um pouco astronaútico.

 

Desprendeu-se meu corpo do selim e minhas pernas foram para o céu, minhas mãos ainda se tinham nos guidãos e a bicletada ainda seguia seu percurso, tranquilamente - caminhava - dona de si, uma figura. Extasiada com a sensação de leveza, pela a mágica que me fora emprestada, festejava discreta em flutuar, percebendo que não era um sonho, aquilo realmente acontecia, eu flutuava. Podia flutuar sobre as ruas e nadar no ar sobre elas, vendo tudo diferente e livrando meu corpo daquelas concretudes sólidas.

 

É verdade, confesso, naquela época eu nadava todos os dias, nadava na piscina - nossos rios contidos de azuleijos - sentido o prazer que era perder a gravidade nas águas e silenciar os ruídos naquele som agradável dos líquidos roçando nosso ouvidos e acarinhando nossa pele... Flutuar, nadar, voar, de toda forma, era minha brincadeira preferida em retirada do mundo. Nadando eu podia existir em silêncio, podia voltar ao útero, podia explorar o mundo e confundia alturas de pernas e cabeças, círculos de peitos e bundas e arriscava saltos amansados pela queda perfeita de um furo flechal nas águas.

 

Eu gostava tanto de nadar e daquelas ruas, e gostava tanto de bicicletas e voo. Eu sabia que não era sonho, eu flutuava, largando a mão da bicicleta que seguia, agora, com as próprias rodas. Ela se sabia, tinha mapas em si, se caminhava e suspeito que sorria, como eu. Talvez as crianças afogadas tinham-na emprestado para seu passeio de fantasmas pelos rios encanados a visitar os peixes em reuniões secretas por debaixos daquelas rodas de borracha.

 

Comecei então a nadar no ar em direção à casa de minha vó, tão contente e flutuante. O mundo ficava menor e mais silencioso e podia escutar o atravessar dos meus braços no ar. Podia ouvir uns passarinhos mais ao alto e cruzar ruas sem esquinas e sem pisoteios de restos de plásticos de indústrias.

 

Acordei e guardei esse sonho para sempre, sabendo, claro, que não era sonho, era fllutuação no mundo. Ainda me pergunto por onde anda minha bicicleta dos sonhos e os meninos arraigados a árvores naqueles tempos de enchentes políticas, de indústrias de carros, de riozinhos submersos e mundos paralelos.  s de enchentes políticas.  

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